26 novembro 2020

OCUPAÇÃO DE CATADOR DE MATERIAIS RECICLÁVEIS: CONFIGURAÇÕES POLITICAS NACIONAIS


Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais 

Impulsionada pela organização nacional, uma série de regulamentos, normas, decretos e leis passou a considerar aspectos relativos ao trabalho dos catadores brasileiros. Além da identificação da profissão de catador em 2002 pela CBO, foi criado o Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores de Lixo, em 2003, o qual, sob a legenda CIISC, em 2010, passou a ser denominado Comitê Interministerial para Inclusão Social e Econômica de Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis.

Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais
Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais

Em 2006, passou a vigorar o Decreto n. 5.940 (BRASIL, 2006) que instituiu a separação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, na fonte geradora, e sua destinação a associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Estabeleceu-se, desse modo, uma articulação entre as associações e cooperativas e os órgãos e as entidades públicas para a realização da coleta seletiva solidária.

 

Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais
Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais

 

Já em 2007, foram definidas Diretrizes para o Saneamento Básico, por meio da Lei n. 11.445 (BRASIL, 2007, art. 24). A partir daí, em áreas com sistema de coleta seletiva de lixo, a contratação da prestação de serviços de processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos recicláveis ou reutilizáveis pode ser feita por associações ou cooperativas formadas exclusivamente por pessoas de baixa renda, reconhecidas pelo poder público como catadores de materiais recicláveis.

No ano de 2010 foi aprovada a Lei n. 12.305 (BRASIL, 2010a), que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos com diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento dos resíduos. Essa lei (art. 42) permite ao poder público instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, às iniciativas, dentre outras, de implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associações de catadores de materiais reutilizáveis ou recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda

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Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais
Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais

Esses instrumentos jurídicos, por um lado, contribuem para fortalecer a organização dos catadores e, por outro, disseminam ideias e valores que atuam no convencimento do trabalho informal, difundindo-o como alternativa social frente à diminuição da intervenção do Estado na promoção do emprego assalariado e na garantia de direitos sociais (BARBOSA, 2007).

Considerando os aspectos históricos relativos à organização do segmento e à institucionalização de políticas voltadas para os catadores, pode-se perceber que, na primeira década do século 21, houve um deslocamento da coleta como uma das formas de subsistência, realizada de modo individual, atividade recorrente na última década do século 20, para a coleta como a forma de subsistência, realizada por catadores organizados. Esse deslocamento demarcou a emergência de novas tecnologias para a realização do trabalho de coleta, assim como fomentou sua organização social e política.

Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais
Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais

A realização de eventos na América Latina e no Brasil, na primeira década do século 21, provocou mudanças importantes na realidade dos catadores e tensionou os interesses envolvidos na organização do segmento. Diante das reivindicações pelo protagonismo dos catadores e pela valorização do seu trabalho, a organização nacional enfrentou demandas de voltadas para a proteção ambiental na perspectiva do desenvolvimento sustentável.

Nas duas últimas décadas do século 20, instituições nacionais e internacionais vêm destacando os problemas ambientais como o grande desafio a ser superado e apontam a necessidade de mudança de paradigma sobre o desenvolvimento econômico mundial (BARROS; PINTO, 2008; GONÇALVES-DIAS, 2009). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 forneceu as bases para a formulação de políticas com premissas de sustentabilidade para a defesa e a preservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras.

Com base nesse marco jurídico, o desenvolvimento sustentável emerge como modelo de desenvolvimento capaz de equilibrar as relações e reintegrar o homem à natureza (MERICO, 2001). Seu objetivo principal consiste em garantir a capacidade de as gerações presentes atenderem suas necessidades sem comprometer as capacidades de as gerações futuras fazerem o mesmo (CMMA, 1987). Do conceito de desenvolvimento sustentável deriva a noção de sustentabilidade, apropriada por grupos ambientalistas, organizações não governamentais, cooperativas de produção, governos e organismos internacionais e gestores empresariais com o propósito de abranger a participação de todos os segmentos na busca do desenvolvimento de consensos em torno do meio ambiente (GONÇALVES-DIAS, 2009).

Sob o slogan da proteção ambiental, o desenvolvimento sustentável vem sendo forjado como um paradigma que articula as relações econômicas e sociais às relações ambientais, frente a outros modelos de desenvolvimento que contemplariam apenas as dimensões econômica e social. Ancorado na noção de sustentabilidade, o desenvolvimento sustentável parte da premissa de que o atendimento às necessidades das gerações presentes e futuras depende da vontade de cada um, ou da parte que cada um pode fazer.

A partir dessa proposição, as organizações da sociedade civil são mobilizadas para desenvolver ações com objetivos relacionados à preservação ambiental. Os temas ambientais passam também a influenciar os modelos de administração empresarial, levando os movimentos ambientalistas e outros movimentos sociais a optar por posturas cooperativas com o setor privado e com o Estado, impulsionando, assim, as políticas de parcerias entre organizações público-privadas, colaborações interorganizacionais e alianças entre empresas e organizações não governamentais (GONÇALVES-DIAS, 2009. Essas "novas" práticas, entendidas como "novas relações baseadas na negociação, na contratualidade e na gestão conjunta de programas e atividades" (JACOBI, 2006), passam a compor o cenário social. É como se bastasse à sociedade ampliar sua participação e aos governos criar espaços, tornando os conflitos visíveis e confrontando as diferenças, para resolver os problemas e atender às necessidades sociais.

No que diz respeito à gestão dos resíduos, as ações no âmbito do desenvolvimento sustentável serão realizadas a partir de parcerias e não terão como base as reivindicações dos catadores, mas sim a busca de soluções para as questões relacionadas ao meio ambiente, diante das pressões de agencias nacionais e internacionais para combater o aumento da produção de resíduos sólidos.

Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais
Ocupação de catador de materiais recicláveis: configurações político-institucionais

Como se pode perceber, a gestão sustentável dos resíduos, como "um processo economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente adequado" (JACOBI; VIVEIROS, 2006), pretende garantir a gestão dos resíduos como condição de proteção ambiental. Porém, para alcançar seus propósitos, esse modelo de gestão articula organismos governamentais e organizações comunitárias, associações e cooperativas de catadores.

Para tentar atender às reivindicações dos catadores, os programas de coleta seletiva serão implementados a partir de políticas de inclusão produtiva, como alternativa de geração de trabalho e renda. Ao serem apresentados como iniciativas articuladas às instituições voltadas para a criação de modos sustentáveis de produção, negócios e serviços, os processos de organização dos catadores ganham novas características e passam a responder pela capacidade de indução de um comportamento socioambiental responsável.

Para alguns analistas, os catadores são considerados fortes aliados das municipalidades, das empresas e das políticas ambientais, na busca de soluções para o problema do lixo urbano por meio de ações de desenvolvimento sustentável (JACOBI, 2006; WALDMAN, 2008; GONÇALVES-DIAS, 2009). As discussões promovidas a partir das articulações e alianças forjadas para o fortalecimento da organização e estruturação dos grupos de catadores utilizam o argumento de que "os grupos da sociedade civil organizada, com suas diversas representações e campos de atuação, têm estado presentes – em muitos casos, ocupando papel de destaque – nas discussões e nos planejamentos de programas de coleta seletiva, amplos e ousados, nos quais o catador, além de parceiro prioritário, é percebido em sua plenitude" (ROMANI, 2004, p. 64).

Na realidade, em alguns casos, são os próprios catadores que, na tentativa de valorização e respeito ao trabalho que realizam, incorporam o discurso segundo o qual são considerados "agentes ambientais", visto que contribuem para a limpeza do espaço urbano, evitam a degradação de solos e águas e, ainda, reduzem a extração de matérias-primas da natureza.

As iniciativas de organização dos catadores, a partir desse enfoque, possibilitam o entendimento de um segundo deslocamento, que corresponde a uma passagem da condição de "catador de materiais recicláveis" à condição de "agente ambiental", promovida pelas parcerias. As publicações indicam que são as articulações entre as organizações do segmento de catadores e outras entidades que, ao atenderem a aspectos técnico-operacionais da gestão dos resíduos, garantem "dimensões mais amplas em termos de ações e atores" (ROMANI, 2004) para a organização da coleta seletiva e preservação ambiental.

A ajuda de instituições no estabelecimento de parcerias com os catadores de materiais recicláveis é compreendida como alternativa para a expansão da organização social e econômica desse segmento. Os parceiros são reconhecidos como "verdadeiros aliados que preconizam o papel essencial e fundamental dos catadores, não só para a limpeza pública, como para a preservação da natureza e dos recursos naturais" (SILVA, 2006, p.16).

O reconhecimento da importância das instituições para o fortalecimento da organização dos catadores também é constatado nas produções que se preocupam em explicar como os catadores avançaram nos seus processos de organização social e econômica, através da formação de associações e cooperativas e, com isso, mudaram a visão da sociedade sobre o seu trabalho. Para conferir legitimidade a essas perspectivas, as experiências de organização dos catadores são tratadas como resultado de iniciativas implementadas pelo poder público municipal ou por outras instituições a exemplo da realização do Fórum Nacional de Lixo e Cidadania e da criação do Comitê Interministerial de Inclusão Social dos Catadores.

Dessa forma, as reivindicações dos catadores, feitas com o propósito de garantir condições de vida e trabalho, são acomodadas na interlocução com as instituições voltadas para a proteção e preservação do meio ambiente, norteadas por princípios sustentáveis, com o apoio do poder público. Nesse movimento, as reivindicações dos catadores são retiradas de um campo de conflito e tensão e acomodadas num campo consensual onde as práticas são rearranjadas como alternativas de geração de trabalho e renda, através de políticas de inclusão produtiva dissociadas, porém, das políticas públicas de emprego.

Assim, o que, à primeira vista, pode parecer uma exigência dos catadores constitui-se num arcabouço de explicações que garantem visibilidade às ações no âmbito da proteção ambiental e do desenvolvimento sustentável. Isso faz com que, aos poucos, as manifestações e reivindicações dos catadores sejam tomadas de assalto por outros atores. A emergência da figura de catador ligada aos movimentos ambientalistas constitui um jogo em que há, numa mesma ação, a promoção do catador como agente ambiental, imagem muitas vezes romantizada e, também, a captura dos processos de organização em torno da coleta.

A incorporação da perspectiva de desenvolvimento sustentável pelos catadores pode ter implicações no conjunto das práticas de coleta. No entanto, esse trabalho, na sua relação com a sociedade, responde significativamente a situações e questões determinadas pelas condições históricas. Nesses processos, os catadores desenvolvem e incorporam um conjunto de procedimentos contraditórios provenientes do descompasso entre as atividades que historicamente realizam.

Esse descompasso está relacionado aos instrumentos jurídicos existentes desde a década de 1980, mas, principalmente, à legislação criada na primeira década do século 21 e aos instrumentos tecnológicos, ou seja, aos conhecimentos produzidos sobre a coleta e a reciclagem, nesses mesmos períodos.

Observa-se, assim, uma tênue fronteira entre os interesses dos catadores, forjados nas manifestações e lutas sociais, e os interesses de um mercado constituído a partir da coleta e reciclagem do lixo urbano. Esse mercado, por um lado, tende ao atendimento dos propósitos das instituições, alinhados aos interesses da indústria da reciclagem e, por outro, aos propósitos do segmento de catadores, organizado em associações e cooperativas, convencidos de que essas formas facilitam e fortalecem os processos em que se inserem

Fonte:http://www.scielo.br

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