Sustentabilidade urbana: significado e medidas
Apesar dos esforços recentes empreendidos na sistematização de informações para a gestão ambiental urbana em cidades de diversos países e regiões, o desafio de lidar com a carência de informações sistematizadas sobre a questão ambiental urbana ainda é de grande monta. Não é por outra razão que grande parte das decisões tomadas por órgãos públicos, na área ambiental, se dá a partir de informações imprecisas que tornam-se “certezas” fragilmente construídas.
A idéia de sustentabilidade urbana é uma ferramenta poderosa na
aproximação das temáticas ambiental e urbana, a qual se consolidou ao
longo da década de 90. A oposição entre o ambiental e o urbano, o
primeiro visto como pertencente ao reino do natural e o segundo como a
expressão do não-natural, dominou o pensamento ambientalista em seus
primórdios. Se nas raízes do ambientalismo e em suas vertentes
preservacionista e conservacionista abre-se um enorme ponto cego em
relação à questão urbana (Costa, 1995), a mudança de enfoque na
definição da questão ambiental em direção à sustentabilidade nos
anos 80 permitiu uma aproximação das temáticas.
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Sustentabilidade urbana |
Temas como desenvolvimento urbano, controle da poluição
atmosférica e hídrica nas cidades, utilização sustentável de recursos
naturais e conservação de espaços verdes no interior dos espaços
urbanos tiveram forte presença na agenda das principais organizações
multilaterais voltadas para o desenvolvimento e para a questão urbana
nos anos 90, bem como em seus critérios para aprovação de
projetos e concessão de financiamentos (UNCHS, 1988; The World Bank,
1991; United Nations, 1992; UNDP, 1992; UNDP/UNCHS/The World Bank,
1994).
No caso das Conferências Internacionais, é sintomática a inclusão
da questão ambiental no espaço urbano como um dos cinco grandes temas
do Hábitat II (conferência internacional da ONU sobre as cidades),
bem como a inclusão das temáticas cidades e poder local entre as
principais questões discutidos na Rio 92 (conferência internacional
da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento) e sistematizados na
Agenda 21.
Recentemente, o Millennium Ecosystem Assessment, ou Avaliação Ecossistêmica do Milênio
, incluiu o sistema urbano entre as 10 categorias de sistemas
utilizadas para apresentar seus resultados (Millennium Ecosystem
Assessment, 2005).
A Agenda 21 Brasileira elegeu o tema cidades sustentáveis como um
dos seis pilares sobre os quais se sustenta a construção da
sustentabilidade ambiental, social e econômica do país (Novaes,
2000).
Como foi enunciado, a idéia de sustentabilidade urbana corporifica
a convergência entre o ambiental e o urbano. Mas, a despeito da
crescente importância e amplo uso do conceito, este está longe de
possuir significado consensual. Segundo Ferreira (1998: 59), “o
conceito torna-se um ponto de referência obrigatório dos debates
acadêmicos, políticos e culturais; na verdade, passa a ser uma idéia
poderosa, sobre a ordem social desejável e um campo de batalha
simbólico sobre o significado desse ideal normativo”.
O que há subjacente às diversas versões do que seria o
desenvolvimento sustentável urbano é uma disputa pelo estabelecimento
da “verdade” no que tange a esse conceito. Verdade entre aspas, pois
esta nunca é absoluta, é sempre socialmente construída através de
uma disputa de poder. Segundo Foucault (1996:13) os discursos em si
não são verdadeiros ou falsos, o que existe é “um combate pela
verdade [...] pelo conjunto das regras segundo as quais se distingue o
verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos
de poder”. Para Bourdieu (1996: 127), “quando se trata do mundo
social, as palavras criam as coisas, já que criam o consenso sobre a
existência e o sentido das coisas, o senso comum”. Nesse contexto,
“se existe uma verdade, é que a verdade é um lugar de lutas”.
Ao aplicar esta discussão à questão da sustentabilidade urbana,
Acselrad (1999) alerta que a forma pela qual se articulam conceitos e
se constroem matrizes discursivas que articulam as questões ambiental
e urbana fazem parte de um jogo de poder em torno da apropriação do
território e de seus recursos, que têm por objetivo legitimar ou
deslegitimar discursos e práticas sociais. Partindo daí, o autor
investiga os diversos discursos sobre a sustentabilidade urbana e
identifica matrizes discursivas de representação de forma a tornar
claro o que está sendo disputado, quais são as visões de futuro de
cidade em disputa, o que se fazer durar, para quê e para quem,
tornando transparentes as diferentes propostas políticas existentes
por trás dos rótulos meio ambiente e sustentabilidade. São três as
matrizes discursivas de sustentabilidade urbana identificadas pelo
autor. A primeira, representação tecno-material da cidade, combina
modelos de racionalidade energética com modelos de equilíbrio
metabólico e reduz a sustentabilidade urbana a seu aspecto
estritamente material. A segunda, representação da cidade como espaço
da qualidade de vida, combina modelos de pureza, de cidadania e de
patrimônio e remete a sustentabilidade a um processo de construção de
direitos que possam equacionar as externalidades negativas
responsáveis pela insustentabilidade urbana. A terceira matriz,
centrada na reconstituição da legitimidade das políticas urbanas,
combina modelos de eficiência e equidade, além de remeter a
sustentabilidade à construção de pactos políticos capazes de
reproduzir suas próprias condições de legitimidade.
Compreender que a sustentabilidade urbana é antes uma idéia em
construção e disputa que uma definição acabada, é fundamental para
compreender o papel no estabelecimento de sua “verdade” dos esforços
em torná-la mais operacional e mensurável, como a criação de
indicadores. Portanto, é necessário explicitar aqui o que se entende
por sustentabilidade ambiental.
Eximimos-nos, contudo, de efetuar comparações entre o conteúdo
aqui atribuído à idéia de sustentabilidade urbana e outras definições
importantes no estabelecimento da “verdade” sobre o tema –como as
provenientes da Agenda 21 (United Nations, 1992), do Habitat I
(UNCHS, 1988), dentre outras– uma vez que esta se tornaria por demais
extensa no contexto deste artigo.
Optamos por utilizar, dentre os vários conteúdos atribuidos à
idéia de sustentabilidade urbana, uma que estivesse em consonância
com a terceira das matrizes discursivas de sustentabilidade urbana
identificadas por Acselrad (1999). Nossa escolha recaiu sobre a
definição do Urban World Forum (2002), que define sustentabilidade
urbana a partir do estabelecimento de um conjunto de prioridades, são
elas: superar a pobreza, promover equidade, melhorar a segurança
ambiental e prevenir a degradação, estar atento à vitalidade cultural
e ao capital social para fortalecer a cidadania e promover o
engajamento cívico.
A esta definição adicionamos as observações feitas pro McGranahan e
Satterthwaite (2002) e Miller e Small (2003) de que para ser
considerada sustentável, não é suficiente que uma cidade confira a
seus habitantes condições ambientais equilibradas, mas que o faça sem
gerar externalidades negativas para outras regiões (próximas ou
distantes) e para as gerações futuras. Isso implica em levar em conta
não apenas a escala local, ou intra-urbana, da sustentabilidade, mas
também considerar a escala regional, constituída pela cidade e suas
relações com o entorno, e a escala global, constituída pelos seus
impactos sobre os problemas ambientais globais, como o efeito estufa,
e por questões relativas aos impactos agregados da rede mundial de
grandes cidades sobre o planeta.
Apesar dos esforços recentes empreendidos na sistematização de informações para a gestão ambiental urbana em cidades de diversos países e regiões, o desafio de lidar com a carência de informações sistematizadas sobre a questão ambiental urbana ainda é de grande monta. Não é por outra razão que grande parte das decisões tomadas por órgãos públicos, na área ambiental, se dá a partir de informações imprecisas que tornam-se “certezas” fragilmente construídas.
Da necessidade de provisão de informação de qualidade para guiar a
tomada de decisões relativas à sustentabilidade, surgiram desde o
final da década dos 80, várias iniciativas de construção de índices e
indicadores, a maior parte delas aplicadas à escala nacional. Tais
iniciativas possuíam em comum o objetivo de fornecer subsídios à
formulação de políticas, bem como monitorar o progresso no
cumprimento de acordos internacionais e orientar a tomada de decisão
por atores públicos e privados. No seu conteúdo procuram descrever
e mensurar a interação entre a atividade antrópica e o meio
ambiente, conferindo à idéia de sustentabilidade maior
operacionalidade e funcionalidade.
Em geral, tais iniciativas tomam por base o modelo de
pressão-estado-resposta (OECD, 1994), ou sua variante força
motora-estado-resposta (United Nations, 2001). Neste modelo, os
indicadores de estado buscam descrever a situação presente, física ou
biológica, dos sistemas naturais. Os indicadores de pressão, ou
força motora, tentam avaliar e medir as pressões exercidas pelas
atividades antrópicas sobre os sistemas naturais ou as forças motoras
que geram tais pressões, respectivamente. Os chamados indicadores
de resposta procuram avaliar a qualidade das políticas e acordos
formulados para responder, ou seja, minimizar os impactos antrópicos.
Um marco dentre tais iniciativas foi a criação pela Comissão de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas de um Grupo de Trabalho
de Indicadores de Desenvolvimento Sustentável. O objetivo de tal
comissão foi construir indicadores acessíveis aos tomadores de
decisão que pudessem auxiliar os países nos seus esforços de medir o
progresso rumo ao desenvolvimento sustentável. A metodologia básica
proposta evoluiu de uma abordagem força motora-estado-resposta para
uma abordagem baseada em temas e sub-temas de desenvolvimento
sustentável a partir da experiência acumulada nos testes e nas
avaliações por experts. Alguns países participantes da etapa de
testes concluíram que a abordagem força motora-estado-resposta,
embora adequada para a dimensão ambiental, não se mostrou adequada
para as dimensões social, econômica e institucional do
desenvolvimento sustentável (United Nations, 2001).
Outra iniciativa digna de nota, esta mais específica em relação ao
urbano e à escala local, é a do Programa de Indicadores Urbanos do
Habitat, tem por objetivo servir de base para o estabelecimento de
uma Rede Mundial de Observatórios Urbanos, bem como para a avaliação e
controle da implementação dos programas do Habitat e da Agenda 21. A
iniciativa contempla indicadores relativos a cinco temas: abrigo (shelter); desenvolvimento social e erradicação da pobreza; gestão ambiental; desenvolvimento econômico; governança (UNCHS, 2004).
Na América Latina, uma iniciativa nesse sentido foi a criação pela
CEPAL da Rede de Indicadores de Desenvolvimento Sustentável, como o
objetivo de apoiar os países latino americanos nos processos de
construção e implementação de indicadores de desenvolvimento,
promovendo também intercâmbio e troca de experiências.
Entretanto, tal iniciativa ainda é insipiente. No Brasil, destaca-se
a iniciativa Indicadores de Desenvolvimento Sustentável-Brasil 2004,
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que
calcula indicadores de sustentabilidade nas dimensões ambiental,
social, econômica e institucional para os estados da federação
(IBGE, 2004).
Recentemente, em junho de 2006, o Banco Mundial anunciou durante o
III Urban Fórum, uma proposta de facilitar o desenvolvimento de
indicadores urbanos padronizados com uma forte dimensão de
sustentabilidade. Nos dois primeiros anos do projeto serão
construídos indicadores em parcerias com 5 cidades-piloto: Belo
Horizonte e São Paulo, no Brasil, Bogotá na Colômbia e Toronto e
Vancouver no Canadá.
A consolidação de índices sintéticos como medida de
desenvolvimento econômico e social, como o Produto Interno Bruto
(PIB) e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), impõe a construção
de medidas de sustentabilidade que possam dialogar com esses
indicadores historicamente consagrados. Desta forma, os índices de
sustentabilidade em geral, e os índices de sustentabilidade urbana em
particular, podem ser considerados como parte de uma quarta geração,
em construção, dos índices de desenvolvimento2 .
Dentre as dificuldades metodológicas comuns na construção de
indicadores de sustentabilidade, urbanos ou não, destacam-se a
formulação conceitual apropriada, a tradução operacional em
variáveis, a obtenção de dados fidedignos e o seu tratamento
estatístico adequado. Dada a inexistência de consenso em relação aos
conceitos de sustentabilidade e de qualidade ambiental, o processo de
escolha das variáveis a serem utilizadas na suas mensurações acaba,
muitas vezes, sendo mais uma função da disponibilidade de dados do
que uma decorrência do conceito, o que compromete o rigor teórico
das relações de causalidade encontradas entre os diferentes
indicadores. A carência de informações sistemáticas tem sido um
problema recorrente para todos aqueles que trabalham com indicadores
ambientais e de sustentabilidade (Environmental Sustainability
Indicators, 2002; Esty e Porter, 2002; United Nations, 2001;
Herculano, 1998; Isla, 1998).
Fonte: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612006000200004