21 janeiro 2014

ENTULHO VIRA MATÉRIA PRIMA

Entulho vira matéria-prima

Agregados reciclados chegam aos canteiros das construtoras, adquiridos de empresas especializadas ou gerados na própria obra

 

 

 Reaproveitar restos de obras deixou de ser prática rara entre as construtoras, embora o percentual de reciclagem no Brasil ainda seja baixo – menos de 5% dos 65 milhões de t de resíduos geradas anualmente pelo setor. Nos últimos cinco anos, o mercado de reciclagem de resíduos de construção e demolição (RCD) experimentou um boom, apoiado principalmente nas obrigações legais que vêm remodelando a indústria da construção civil.
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O primeiro grande impulso veio em 2002, quando o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) aprovou a Resolução no 307, estabelecendo diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão desses resíduos.Na prática, o órgão criou responsabilidades para toda a cadeia envolvida: geradores, transportadores, receptores e municípios. Resultado: iniciou-se um ciclo de novos procedimentos e atividades controladas para fazer valer a regra.
O SindusCon-SP também deu um passo importante. Entre 2003 e 2004, a entidade reuniu 11 construtoras num programa-piloto de gestão ambiental de resíduos em canteiros de obras. As experiências foram compiladas numa cartilha explicativa, distribuída ao setor. Entre as vantagens identificadas no programa estava o principal objetivo da Resolução lançada pelo Conama: a redução dos resíduos na obra, que foi percebida por 79% dos participantes. "O programa provocou um melhor controle dos resíduos gerados e, com o canteiro organizado, tornou mais fácil fazer a separação e o reaproveitamento desses materiais, o que diminuiu os custos com a coleta e até os acidentes de trabalho", conta André Aranha Campos, representante do Comasp (Comitê de Meio Ambiente do SindusCon-SP).
Além da legislação e dos ganhos que podem ser obtidos com a melhor gestão dos resíduos, há também outro aspecto que colabora para o reúso do entulho. "Em São Paulo, temos um grande consumo de agregados, mas as jazidas estão cada vez mais longe. Isso tem encarecido a matéria-prima natural e elevado os custos com o transporte", afirma Vanderley John, professor da Poli-USP. Para ele, essa equação torna a opção pelos reciclados bastante viável, desde que o produto reutilizado apresente boa qualidade e desempenho compatível.
Agregados reciclados
De acordo com a Resolução do Conama, os resíduos da construção são classificados em quatro categorias. Alvenaria, concreto, argamassas e solos compõem a classe A dos resíduos, passível de reciclagem para uso na forma de agregados. Essa categoria corresponde ao principal alvo das empresas recicladoras e das construtoras.Mas há também os restos de madeira, metal, plástico e papel (classe B) que podem ser reutilizados no canteiro ou encaminhados para reciclagem e, ainda, os produtos sem tecnologia para recuperação (classe C) e os resíduos perigosos (classe D), cuja destinação deve seguir normas técnicas específicas.

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Para os resíduos da classe A, em 2004 surgiram duas normas técnicas que estabeleceram critérios para o uso de agregados reciclados na execução de camadas de pavimentação (NBR 15115) e para a utilização em pavimentação e preparo de concreto sem função estrutural (NBR 15116). Integradas a políticas públicas, as normas técnicas impulsionam as construtoras a experimentar os reciclados.
Em São Bernardo do Campo (SP), a empresa Urbem Tecnologia Ambiental recebe diariamente cerca de 300 m3 de resíduos de classe A, que são transformados novamente em areia, brita, pedrisco, rachão e bica corrida. "As grandes construtoras já são 80% dos nossos clientes", conta o diretor, Antônio Baldini Neto.
A aplicação mais comum,segundo ele, é nas áreas planejadas para estacionamento e circulação de veículos, caso da obra da nova unidade da USP (Universidade de São Paulo) na zona Leste de São Paulo.Proposta pelo DET (Departamento de Engenharia de Transportes) da Poli-USP, a idéia do "Pavimento Ecológico" contou com produtos fornecidos pela Urbem e pela Base Ambiental Recicladora, empresa credenciada na prefeitura como Área de Transbordo e Triagem de resíduos da construção civil.
"Adquirimos resíduos na forma bruta, a preços compensatórios, que foram usados como rachão para aumento da capacidade de suporte do subleito, já que se tratava de solo de fundo de vale", explica Liedi Bariani Bernucci professora-chefe do DET e coordenadora do Laboratório de Tecnologia de Pavimentação. "Também empregamos agregados reciclados provenientes da britagem dos resíduos, em duas camadas de 15 cm cada, uma de sub-base e outra de base em toda a estrutura do pavimento do sistema viário, com bons resultados até o momento", completa. Geralmente, os produtos reciclados custam menos do que os naturais, mas é preciso considerar o frete envolvido.
Reciclagem no canteiro
Separar e reciclar os resíduos no próprio canteiro, além de poupar as jazidas naturais, pode significar economia no transporte de materiais. "O problema é que é preciso ter escala de resíduos para compensar os custos com as máquinas que vão fazer a moagem e a separação", pondera Vanderley John.Mas, nos casos em que é necessário demolir estruturas, levar para o canteiro uma miniusina de reciclagem pode ser vantajoso.
Foi o que aconteceu na obra do Condomínio Villaggio Maia, em Guarulhos (SP). Numa visita ao terreno, engenheiros da construtora Setin se depararam com um piso de concreto de 12.500 m3 de volume. Só para retirar o material do local seriam necessárias 1.200 viagens de caminhão. A solução encontrada foi adquirir os equipamentos e montar uma recicladora lá mesmo. Reciclado, o piso de concreto virou blocos de fundação e de concreto, muros, lajes, shaft para abrigo de água e luz, contramarco das janelas e outros pré-moldados. O custo total dos equipamentos e da instalação foi de R$ 21,27/m2. "No final a economia gerada não chegou a 1%, mas evitamos enormes impactos ambientais ao reutilizar matéria-prima e dispensar o transporte que provoca trânsito e aumenta a poluição do ar", contabiliza Lucy Mari Tsunematsu, gerente de projetos da empresa.
Legislação e normas técnicas
Resolução Conama no 307 – Gestão dos Resíduos da Construção Civil, de 5 de julho de 2002

NBR 15112:2004 – Resíduos da construção civil e resíduos volumosos – Áreas de transbordo e triagem – Diretrizes para projeto, implantação e operação

NBR 15113:2004 – Resíduos sólidos da construção civil e resíduos inertes – Aterros – Diretrizes para projeto, implantação e operação

NBR 15114:2004 – Resíduos sólidos da construção civil – Áreas de reciclagem – Diretrizes para projeto, implantação e operação

NBR 15115:2004 – Agregados reciclados de resíduos sólidos da construção civil – Execução de camadas de pavimentação – Procedimentos

NBR 15116:2004 – Agregados reciclados de resíduos sólidos da construção civil – Utilização em pavimentação e preparo de concreto sem função estrutural – Requisitos
Situação semelhante aconteceu numa obra da Racional Engenharia, no centro do Rio de Janeiro. A construção do Edifício Torre Almirante, com 36 pavimentos, implicou a demolição de um esqueleto de nove pavimentos, o que gerou 7 mil m3 de entulho. "Decidimos alugar um terreno na região de Campo Grande para servir de usina de reciclagem desses resíduos, com um investimento de R$ 500 mil. Com os reciclados, fizemos toda a pavimentação e ainda conseguimos fabricar mais blocos de concreto do que utilizamos de fato na construção", conta Wilson Pompílio, diretor da construtora.Ao final da obra, cerca de 100 mil blocos foram doados para entidades assistenciais da cidade.
Obras públicas
Pioneiro no setor público, o Programa de Reciclagem de Entulho da prefeitura de Belo Horizonte existe desde 1993.Hoje, a cidade conta com três usinas que movimentam até mil t/dia dos materiais que sobram das grandes construções. Os resíduos são transformados em areia,minério de ferro e dois tipos de brita, aplicados em bases de vias públicas e meios-fios e na confecção de blocos para obras da prefeitura.
Em Curitiba, um projeto-piloto do governo local possibilitou a construção de uma creche a partir dos resíduos gerados na própria obra, incrementados por sobras de outras construções feitas pela empresa Enjiu, vencedora da licitação. Restos de material cerâmico como telhas e tijolos foram despejados num moinho de 2,5 t, com dois rolos de 600 kg que misturaram os materiais. "Fizemos testes com amostras e comprovamos a qualidade do material, sua aderência, resistência e compatibilidade em relação às normas existentes", ressalta Nelson Wargha Filho, engenheiro responsável pela empreitada. O produto final foi aplicado como emboço e argamassa para assentar tijolos.
USOS RECOMENDADOS PARA RESÍDUOS RECICLADOS
ProdutoCaracterísticasUso recomendado
Areia recicladaMaterial com dimensão máxima característica inferior a 4,8 mm, isento de impurezas, proveniente da reciclagem de concreto e blocos de concreto.Argamassas de assentamento de alvenaria de vedação, contrapisos, solo-cimento, blocos e tijolos de vedação.
Pedrisco recicladoMaterial com dimensão máxima característica de 6,3 mm, isento de impurezas, proveniente da reciclagem de concreto e blocos de concreto.Fabricação de artefatos de concreto, como blocos de vedação, pisos intertravados, manilhas de esgoto, entre outros.
Brita recicladaMaterial com dimensão máxima característica inferior a 39 mm, isento de impurezas, proveniente da reciclagem de concreto e blocos de concreto.Fabricação de concretos não estruturais e obras de drenagens.
Bica corridaMaterial proveniente da reciclagem de resíduos da construção civil, livre de impurezas, com dimensão máxima característica de 63 mm (ou a critério do cliente).Obras de base e sub-base de pavimentos, reforço e subleito de pavimentos, além de regularização de vias não pavimentadas, aterros e acerto topográfico de terrenos.
RachãoMaterial com dimensão máxima característica inferior a 150 mm, isento de impurezas, proveniente da reciclagem de concreto e blocos de concreto.Obras de pavimentação, drenagens e terraplenagem.
Fonte: Urbem Tecnologia Ambiental
Fatores limitantes

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Apesar dos resultados positivos dessas experiências, especialistas avaliam que o uso de resíduos reciclados continua restrito. "Se pensarmos no potencial existente para a exploração desse mercado, veremos que precisamos evoluir muito", afirma Luiz Tsuguio Hamassaki, pesquisador do Laboratório de Materiais de Construção Civil do Centro de Tecnologia de Obras de Infra-Estrutura do IPT.
Para o professor Vanderley John, as centrais de triagem ainda são ineficientes "porque funcionam como simples pontos de moagem", considera. "O grande desafio está em desenvolver técnicas de reciclagem que sejam economicamente viáveis. Isso quer dizer que precisamos de produtos de alta qualidade que possam ser utilizados em funções mais nobres", argumenta. Somente assim, diz John, será possível fechar o ciclo do uso dos materiais naturais, diminuindo a extração nas jazidas.

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Trabalhos acadêmicos vêm considerando, por exemplo, o problema da variabilidade e da deficiência das técnicas de caracterização dos resíduos. Uma das frentes de pesquisa, iniciada no ano passado, é coordenada por Vanderley John e pelo engenheiro Sérgio Cirelli Angulo, do Departamento de Engenharia de Minas da Poli-USP. Trata-se de um convênio envolvendo a Escola Politécnica, a Universidade Federal de Alagoas, a prefeitura de Macaé (RJ) e o Centro de Tecnologia Mineral do Ministério da Ciência e Tecnologia. "Estamos coletando amostras de resíduos de diferentes localidades para testes com um equipamento não muito caro, chamado jigue, que faz a separação dos resíduos por densidade", explica Angulo. "Nosso objetivo é desenvolver um método mais eficiente de segregação e obtenção de melhor qualidade dos resíduos, viabilizando o uso seguro e padronizado no mercado", finaliza.